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O Mercosulino 29/10/2010 -www.camara.gov.br/representacaomercosul

Jornal “Folha de S. Paulo”


Editorial


De Kirchner a Kirchner

O ex-presidente Néstor Kirchner deixa a cena argentina como nela se projetou, de modo imprevisto. A morte súbita aos 60 anos encerra um período surpreendente da história da nação vizinha, quando foram grandes os obstáculos para que se reerguesse.

Governador por três vezes da remota Província de Santa Cruz, chegou à Casa Rosada com apenas um quinto dos votos, em 2003. Surpreendeu o país e o mundo.

A Argentina mal começava a recuperar-se da crise devastadora de 2001. Kirchner logrou o improvável: unificou o peronismo, rompeu com o FMI, renegociou a dívida externa e derrubou pela metade o desemprego, que alcançara 21,5%. Com temperamento conflitivo, arrostou a Suprema Corte para renová-la, taxou exportações do poderoso estamento rural e enfrentou um locaute nacional.

Com a autoridade adquirida, enveredou na senda populista, ressuscitando, sob os escombros da aplicação canina das receitas ultraliberais, o vocabulário do esquerdismo da década de 1970.

Em lance de astúcia, elegeu como sucessora a própria mulher, Cristina Fernández de Kirchner. Preparava-se para se candidatar à Presidência em 2011, depois de ter sofrido derrota importante, em 2009, na disputa ao Senado.

Assim como Néstor não foi Perón, Cristina não é Evita. Senadora com carreira e brilho próprios, manteve com o marido consórcio de poder que tendia mais à simbiose que à coadjuvação.

Cristina reúne condições para manter-se no comando da Argentina e concorrer à reeleição. Dificilmente, contudo, poderá ir adiante sem negociar e repartir o poder -agora que o estrategista desapareceu.


Jornal ‘Correio Braziliense”


Caderno: Mundo


De Eva Perón a Cristina Kirchner

As argentinas Cristina Kirchner, Evita Perón e Isabelita Perón têm algo em comum: além de mulheres e políticas, tiveram de viver um jogo de luz e sombras, entre exercer um poder próprio ou deixar-se ofuscar pela figura do marido. Em 1952, a atriz Eva Perón morreu aos 33 anos e deixou o caudilho Juan Domingo Perón sozinho na Presidência. Ela tinha muito poder, mas não detinha cargos públicos, recorda o analista político Pablo Mera. Há paralelismo com os Kirchner, porque são um casal que compartilhou o poder, e cada um se ocupava de um aspecto. No caso de Perón e Evita, ele exercia o poder formal, mas era ela quem manejava a fundação e as obras sociais, e tinha uma ingerência muito forte no movimento sindical, recorda.

Mera ressalta, porém, que as semelhanças terminam aí. Cristina não é uma pessoa que não tenha trajetória política (foi advogada e senadora), nem é uma figura como Eva, que detinha o poder, mas não um cargo formal no governo. Tampouco pode ser comparada a Isabelita, terceira mulher de Perón, que se tornou presidente em 1974, após a morte do marido, e demonstrou-se bastante incapaz, explica.

O analista também destaca que Néstor Kirchner, como cônjuge, manejava as alianças políticas. Cristina detinha o papel formal e executivo de governo, mas os dois trocavam ideias, discutiam e tomavam decisões em conjunto. Mera admite como parte da liturgia peronista que Néstor e Cristina tenham tentado mirar-se em Perón e Evita, inclusive adotando posições parecidas em fotos públicas. Era uma tentativa de beber da fonte de uma época dourada. Mas nem ele foi Perón, nem ela é Evita nem tampouco Isabelita, assume.

Mera identifica uma dose de machismo em análises que questionam a fragilidade de Cristina perante a perda do marido e sugerem a ideia de que, por ser mulher, a presidenta não resistirá ao sofrimento da perda. É um discurso que a oposição adotou contra ela desde início: o de que o marido, nas sombras, era quem governava, diz. No entanto, o analista ressalta que, de certa forma, Cristina adotou a mesma lógica. No início do governo, ela avisou: Tudo vai me custar mais porque sou mulher. Agora viúva, ela tem pela frente a prova de fogo: vencer uma conjuntura política desfavorável e disciplinar sozinha o Partido Justicialista. Se souber gerir bem essa fase, ainda pode ganhar a reeleição em outubro de 2011, afirma Mera. (VV)


Governantes vizinhos chegam para o adeus
Evo Morales, da Bolívia, foi o primeiro. Lula faltou a comício de Dilma e antecipou viagem

O boliviano Evo Morales, o uruguaio José Mujica, o chileno Sebastián Piñera, o equatoriano Rafael Correa e o colombiano Juan Manuel Santos foram os primeiros presidentes sul-americanos a se deslocar para Buenos Aires e comparecer ao velório do ex-presidente argentino Nestor Kirchner. O brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva cancelou a participação em atos da campanha de Dilma Rousseff, a três dias da eleição presidencial, e antecipou a viagem - ele chegou no início da noite à capital argentina. O velório público na Casa Rosada, sede do governo, será encerrado às 10h de hoje (11h em Brasília) e o corpo será transladado para Río Gallegos, na Patagônia (sul do país), onde o funeral será reservado apenas para a família e amigos próximos.

Entre os presidentes sul-americanos, o único cuja presença aos funerais não estava confirmada era Alan García, do Peru, que enfrentava dificuldades de transporte por causa de uma tempestade na região de Concepción, onde se encontrava.

Foi a informação sobre a partida do corpo para o sul da Argentina que levou Lula a mudar a agenda, que previa para ontem participação no comício de encerramento da campanha petista, em Recife. "Eu ia para a Argentina amanhã (hoje), mas como a presidente Cristina tomou a decisão de levar o corpo de manhã para ser cremado, vou viajar hoje (ontem)", explicou o presidente durante cerimônia no Rio de Janeiro, à tarde. Lula embarcou de lá para Buenos Aires, depois de renovar os elogios feitos na véspera ao ex-presidente argentino, que ocupava a secretaria-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). "O Kirchner é um homem que eu admiro. Foi um presidente que conseguiu tirar a Argentina do buraco em que ela se encontrava quando ele assumiu o governo", disse.

Além de Lula, eram esperados ainda ontem os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e do Paraguai, Fernando Lugo, que se apresenta debilitado pelo tratamento contra um câncer linfático. Evo Morales, o primeiro dos governantes vizinhos a chegar, abraçou a viúva, a presidenta Cristina Kirchner, e lamentou "uma perda dolorosa para o povo boliviano e todos os povos latino-americanos". Falou também da gratidão pessoal a Kirchner, de quem recebeu "conselhos valiosos" quando assumiu a Presidência da Bolívia, em 2006.

"Extraordinário"

Na mesma linha, o equatoriano Rafael Correa prestou homenagem a "um presidente extraordinário, um grande patriota e um imenso (cidadão) latino-americano". O presidente do Chile, um político direitista cuja posição pró-americana destoa em meio ao predomínio de governos esquerdistas, ressaltou o vazio deixado pelo ex-presidente argentino "para toda a América do Sul". Sebastián Piñera manifestou sua "certeza absoluta" de que Cristina "continuará governando com sabedoria", embora desfalcada da companhia do marido e companheiro de campanhas em mais de três décadas de vida política.

José Mujica, presidente do Uruguai, falou com mais desenvoltura sobre o cenário político argentino e as possíveis repercussões para a vizinhança, em particular o seu país. "Ficamos (os uruguaios) com a interrogação sobre como vai se movimentar a política argentina, que não é um fator de menor importância". Mujica, que nos anos 1960 e 1970 militou na guerrilha esquerdista Tupamaros, situou a importância histórica do peronismo, a corrente política comandada nos últimos anos pelo casal Kirchner. "Ele (Nestor) era chefe do partido, um partido que nunca se sabe qual rumo tomará, porque nele cabem (o ex-presidente argentino Carlos) Menem e tantos outros, e um partido que tem uma incidência tão brutal na política argentina.''


Jornal da Câmara


Caderno: Geral


INTERNACIONAL - Parlamento do Mercosul lembra papel de Néstor Kirchner em defesa da integração


O papel de destaque do ex-presidente da Argentina Néstor Kirchner - que morreu na quarta-feira (28), de ataque cardíaco - no processo de criação do Parlamento do Mercosul (Parlasul) foi lembrado pelos presidentes da entidade, senador Aloizio Mercadante (PT-SP), e da Representação Brasileira do Mercosul, deputado José Paulo Tóffano (PV-SP). Em nota oficial, Mercadante relatou o caminho percorrido por Kirchner, um político oriundo da Patagônia, até a presidência da Argentina, em 2003, com o país mergulhado em profunda crise política e econômica.

“Néstor Kirchner iniciou um processo de renovação econômica e social que mudaria a Argentina. Acima de tudo, demonstrou coragem de enfrentar interesses poderosos, como os da bancada internacional, coragem em defender os direitos humanos contra seus violadores, coragem de colocar os anseios de seu país acima de tudo”, diz a nota.

Mercadante lembrou ainda que o ex-presidente teve também o discernimento de entender que o melhor caminho estratégico para a Argentina era o da integração regional, “e não o das relações supostamente privilegiadas com potências mundiais”. Nesse sentido, foi um grande defensor do Mercosul e da construção da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), da qual era secretário-geral.


INTERNACIONAL - Nota técnica esclarece critérios de representação no Parlasul

A Representação Brasileira no Parlasul também divulgou nota técnica para esclarecer o processo de implementação do Critério de Representação Cidadã e a composição atual do Parlamento. A nota ressalta que os parlamentares do Mercosul na atual fase são deputados federais e senadores que estão em mandato em seus países e não recebem qualquer remuneração extraordinária por sua atuação como integrantes do Parlamento do Mercosul.

Os vencimentos dos futuros parlamentares do Parlasul eleitos diretamente serão definidos em lei interna, que já tramita na Câmara dos Deputados.

Proporcionalidade de partidos - Enquanto não houver eleição direta para o Parlasul, a Representação Brasileira tem sua formação de acordo com a Resolução 01/07, do Congresso Nacional. Atualmente, a Representação Brasileira compõe-se de 18 titulares, sendo 9 deputados e 9 senadores, com igual número de suplentes, designados por meio de ato assinado pelo Presidente do Congresso Nacional. A proporcionalidade para o próximo ano será feita depois que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) publicar a lista final dos senadores e deputados eleitos.

Orçamento - O orçamento do Parlamento do Mercosul é de aproximadamente 1 milhão de dólares (cerca de R$ 1,7 milhão), dividido igualmente entre os quatro países-membros (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), e para manutenção da sede do órgão, instalações e funcionários, em Montevidéu, capital uruguaia. No caso brasileiro, 250 mil dólares foram designados no Orçamento da União. Cabe a cada Casa Legislativa custear as diárias e passagens para a participação dos parlamentares nas sessões no Parlamento do Mercosul.


Jornal do Senado


Comissões: CRE


CRE analisa criação de Dia da Amizade Brasil-Argentina
Projeto de Marcelo Crivella está pronto para ser votado, após receber emenda na Câmara. Data escolhida, 30 de novembro, lembra acordo que deu origem ao Mercosul

Antes que se complete um mês da morte do ex-presidente argentino Néstor Kirchner, ocorrida na quarta-feira, o Brasil terá a possibilidade de celebrar pela primeira vez, em data nacional, a aproximação com o país vizinho. Pode ser concluída na próxima reunião da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) a votação do Projeto de Lei do Senado 55/05, do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), que institui o Dia da Celebração da Amizade Brasil-Argentina, a ser comemorado em 30 de novembro.

O texto a ser votado é uma emenda da Câmara dos Deputados ao projeto original de Crivella. Por meio da emenda, exclui-se o parágrafo segundo do projeto, pelo qual caberia ao Poder Executivo "a adoção de medidas destinadas à difusão e à comemoração" do dia da amizade entre os dois países.

A emenda da Câmara já recebeu parecer favorável da Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE) do Senado. Caso seja também acatada pela CRE, o projeto estará pronto para ir à sanção presidencial. O relator da emenda na comissão é o senador Pedro Simon (PMDB-RS), defensor da aproximação entre os dois maiores países da América do Sul.

Crivella acredita que a institucionalização da data comemorativa ajudaria a promover o reconhecimento da importância de uma boa relação com os países vizinhos. Esse bom relacionamento, ressalta, torna-se cada vez mais importante em um mundo marcado por "rivalidades regionais" e pela competição comercial e política.

"Não obstante o histórico de rivalidades entre os dois países, em face de economias concorrentes e de superadas pretensões hegemônicas, Brasil e Argentina souberam superar assimetrias e conformar, dentro de entorno geográfico ampliado, projetos de integração capazes de aliar desenvolvimento ao crescimento econômico", afirma o senador.

A data de 30 de novembro, segundo Crivella, foi escolhida como homenagem à assinatura, em 1985, da Declaração de Iguaçu, pelos então presidentes da Argentina, Raúl Alfonsín, e do Brasil, José Sarney, primeiro passo para a criação do Mercosul.


Caderno: Especial


Mercadante vai a Buenos Aires para participar de velório

O presidente do Parlamento do Mercosul (Parlasul), senador Aloizio Mercadante (PT-SP), viajou a Buenos Aires ontem para participar do velório do ex-presidente argentino Néstor Kirchner. Mercadante foi inicialmente ao Rio de Janeiro para encontrar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com quem viajaria em seguida, no avião presidencial, à Argentina.

Em nome do Parlasul, o senador divulgou nota na qual demonstra "consternação" com a morte de Kirchner. Ele lembrou que, desde os anos 60, o ex-presidente "dedicou suas energias à luta pela justiça social e pelos direitos humanos". A eleição de Kirchner para a Presidência, prossegue a nota, teria representado a "renovação no cenário político argentino, que demonstrava à época inquietantes mostras de fragilidade e de perda de legitimidade".

"Néstor Kirchner foi capaz de, com decisões difíceis e até polêmicas, iniciar uma transcendente recuperação, que liberaria aquele país de uma profunda recessão", diz a nota assinada pelo presidente do Parlasul. "Kirchner demonstrou valentia e coragem para enfrentar os interesses poderosos, como os dos bancos internacionais, coragem para defender os direitos humanos contra os seus violadores e coragem para colocar os interesses de seu país acima de tudo", acrescenta.


Jornal do Brasil


Editorial


E agora, Cristina Kirchner, como vai ser?

Além da dor natural que qualquer morte em família provoca, a perda de Néstor Kirchner é mais dura ainda para sua mulher, Cristina, a presidente da Argentina. Qualquer argentino pouco politizado sabe que a chefe da nação não dava meio passo sem a aprovação do marido. Agora, pelo menos até o fim do mandato, Cristina terá de caminhar com os próprios pés, até para não criar uma crise inadministrável. O drama é que seus pés estão muito pouco calejados, e logo começarão a surgir as bolhas.

A relação entre os Kirchner não está em julgamento é uma tradição da política dos hermanos o personalismo, desde os tempos áureos dos Perón. Nossos vizinhos são bastante afeitos a um pai ou mãe do povo e dos desamparados.

O que deve ser, isto sim, motivo de reflexão para cada argentino neste momento é o que fazer diante do imponderável colocado ao país pelo destino?

Ainda é cedo para se bater qualquer martelo. Afinal, Néstor não foi sequer enterrado. Cristina, cujos índices de popularidade andam muito baixos diferentemente dos que tinha o marido pode aproveitar-se da tragédia para mobilizar a emotiva população a carregá-la nos ombros até o fim do mandato. Mas será que para tanto ela terá tal capacidade, tal carisma?

Quem também deve estar queimando os neurônios é Júlio Cobos, o vice-presidente argentino, candidato em potencial às próximas eleições presidenciais, que batera de frente com o casal há quase dois anos mas que tem bastante crédito e respeito com o eleitorado. Entre os assessores mais próximos há a certeza de que, pelo menos até a poeira baixar, seria muito perigoso bater em Cristina agora poderia ser um tiro no pé.

O futuro da Argentina será determinado pelos primeiros passos da presidente, agora viúva, de seu maior guia político. Se até aqui ela só precisava cumprir as ordens e pavimentar o caminho até a volta do marido à Presidência, agora precisará de muita firmeza para tomar as rédeas não só de sua vida e futuro político. Mas também dos destinos de toda a nação argentina. Um momento dramático como as histórias contadas nos tangos.


Jornal Valor Econômico


Caderno: Internacional


Governador de Buenos Aires desponta como herdeiro dos Kirchner

Ex-campeão mundial de motonáutica, fã do Rio de Janeiro, bem visto pela mídia e interlocutor do empresariado. Daniel Scioli, governador da Província de Buenos Aires, sempre fez questão de se manter à sombra do padrinho político, Néstor Kirchner. Mas, como ninguém sabe o estado emocional da presidente Cristina Kirchner e seu ânimo para tentar a reeleição em 2011, o obediente aliado entrou com força na lista de pré-candidatos à sucessão da Casa Rosada.

Como maior herdeiro político do kirchnerismo fora da "família K", Scioli "representa o peronismo renovador", diz a analista Graciela Römer, da consultoria Römer & Associados, frisando que ele é tido como mais propenso ao diálogo.

Aos 53 anos, Scioli pouco fala sobre convicções ideológicas, mas suas atitudes recentes o carimbam como moderado. Apesar da ofensiva do governo contra o Grupo Clarín, o governador se absteve de ataques à mídia. Ele tem boa relação com os empresários - inclusive brasileiros - e duas semanas atrás foi ao Colóquio IDEA, um dos principais fóruns de discussão da iniciativa privada, boicotado há anos por integrantes do governo.

Muitos o viam distanciando-se gradualmente de Kirchner, para testar a possibilidade de voo próprio, embora estivesse ao lado do padrinho em quase todos eventos.

No início de outubro, uma pesquisa do instituto Management & Fit o posicionou como segundo político mais bem avaliado da Argentina, atrás apenas do deputado oposicionista Ricardo Alfonsín - e cinco pontos à frente tanto de Cristina quanto de Néstor Kirchner. Vários analistas começaram a falar da conveniência, para o casal, de seguir um plano B e apostar em Scioli como candidato à Presidência. Isso bastou para que uma ministros e governadores aliados lançassem recados de que "o único candidato" à Casa Rosada em 2011 seria o próprio Néstor.

Agora, paradoxalmente, é o kirchnerismo que pode precisar deste ex-esportista para se manter no poder - e isso agrada aos investidores. Um relatório divulgado ontem pelo Barclays Capital aponta Scioli como "aspirante de unidade para o peronismo dividido" e "candidato mais amigável ao mercado". Apesar de fiel ao "casal K", ele preservou uma ponte com figuras de oposição como o ex-presidente Eduardo Duhalde, arquiinimigo de Kirchner. "Ele mantém uma posição ambígua", diz o sociólogo Manuel Mora y Araujo, reitor da Universidade Torcuato di Tella.

Nascido em Villa Crespo, um bairro portenho de classe média, Scioli graduou-se em marketing, mas sua paixão sempre foi o esporte. Quando era adolescente, disputou competições de natação e basquete. Levado por um amigo, tomou gosto pelas lancha de corrida e faturou oito títulos mundiais. Ele perdeu o braço direito num acidente no rio Paraná, em 1989. Desde então, faz uso de uma prótese.

Sua entrada na política se deu após uma passagem pela Electrolux, primeiro como distribuidor de eletrodomésticos no varejo, depois como diretor da empresa na Argentina. Foi eleito deputado federal duas vezes, em 1997 e em 2001, e comandou a Comissão de Esportes da Câmara. De lá, foi pinçado por Duhalde para comandar a Secretaria Nacional de Turismo. Surpreendentemente, Kirchner o chamou para ser vice-presidente na chapa vitoriosa nas eleições de 2003. Discreto, nunca ameaçou a liderança do antigo chefe. E acabou recebendo o apoio incondicional dele para candidatar-se a governador da Província de Buenos Aires, que reúne 38% de toda a população argentina.

Hoje, ele recebe críticas pelo aumento dos índices de criminalidade, ainda abaixo dos registrados no Brasil. Gosta de cercar-se de auxiliares com perfil mais técnico.

Scioli esteve no Rio semanas atrás, onde acompanhou o primeiro turno das eleições presidenciais ao lado do governador do Rio, Sérgio Cabral. "Sou amigo dele e admiro o que ele está fazendo com a urbanização e pacificação das favelas", afirmou Scioli num recente encontro com correspondentes estrangeiros. No Carnaval, ele também esteve na cidade.

Muitos ainda duvidam da sua capacidade de ganhar votos sem a presença de Néstor Kirchner. "Não o vejo nem com a personalidade nem com as condições de transformar-se em um grande líder", diz o sociólogo Mora y Araujo, da Universidade Torcuato di Tella.


Vice-presidente é "culpado" por morte

Da mesma forma que o udenista Carlos Lacerda foi apontado como algoz pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas e jornais o retratavam como um corvo, militantes peronistas de esquerda já escolheram o carrasco pela morte súbita de Néstor Kirchner: o vice-presidente Julio Cobos, rompido com o governo desde 2008. Cobos deu votos de Minerva que deram duas vitórias à oposição no Congresso.

"Kirchner não aguentou tantas punhaladas de Cobos", dizia Santiago Pozzi, de 24 anos, um simpatizante do ex-presidente que se enrolava em uma bandeira argentina na fila do velório, na Casa Rosada. Militantes ameaçavam receber Cobos com "vaias, ovos e pedras".

Acuado, o vice-presidente preferiu não ir ao velório. Por meio de comunicado, disse que sua intenção era comparecer para "prestar as minhas homenagens". "Desde ontem [quarta-feira], tentei coordenar pelas vias institucionais correspondentes o momento adequado, recebendo como resposta que não o fizesse", afirmou. De acordo com ele, o conselho foi dado por ministros de Cristina Kirchner.

Na Argentina, o vice tem a prerrogativa constitucional de presidir o Senado, exercendo o voto exclusivamente em caso de empate. Cobos pertence à União Cívica Radical (UCR), maior partido de oposição, mas havia se aproximado do casal Kirchner e foi escolhido para integrar a chapa de Cristina. Isso quase lhe valeu a expulsão da UCR.

Neste mês, ele voltou a desempatar uma votação, dando à oposição a vitória no projeto de lei que aumentava o valor do salário mínimo para aposentados e pensionistas. O governo vetou a medida, alegando que isso levaria as finanças públicas ao vermelho. A última edição da revista "Veintitrés", do empresário kirchnerista Sergio Szpolski, ainda está nas bancas, com uma foto de Cobos na capa e a frase acusadora: "O regresso de Judas".


Conflito com a mídia pode diminuir

Investidores apostam que a morte do ex-presidente argentino Néstor Kirchner vai fazer com que o governo de sua viúva suavize sua campanha para desmantelar o conglomerado de comunicações Grupo Clarín. Mas alguns analistas políticos da Argentina estão menos confiantes de que a presidente Cristina Kirchner possa deixar de carregar a tocha da inimizade de seu marido com a imprensa.

As ações do Grupo Clarín deram um salto de quase 22% na Bolsa de Buenos Aires ontem, um dia depois de Kirchner morrer de um infarto. Na Bolsa de Londres, as ações do grupo subiram 49% na quarta-feira, e caíram 17% ontem.

Kirchner, que antecedeu sua mulher na Casa Rosada, era visto por muitos como o principal arquiteto das políticas do atual governo. Ele era ferozmente crítico da imprensa em geral - dizendo que eram apenas vozes da oligarquia que queria derrubar seu governo - e havia recentemente dito que o Grupo Clarín "encontraria seu fim" antes da próxima eleição presidencial, em outubro do ano que vem, na qual se previa que ele ou sua mulher se candidatariam.

No ano passado, Cristina Kirchner uma lei que reorganiza o setor de comunicações e requer que o Grupo Clarín venda importantes ativos. Mas a iniciativa foi atrapalhada pelos tribunais argentinos. Várias decisões em favor do Grupo Clarín enfureceram os Kirchner, que acusaram os juízes de ceder à pressão do grupo de comunicações. Um porta-voz do Grupo Clarín não respondeu a um pedido de comentário.

"A morte de Kirchner abre a possibilidade de que o conflito com o Grupo Clarín e o estilo agressivo do governo morram com ele", disse Javier Salvucci, diretor de análise da Silver Cloud Advisors.

Mas o analista político Federico Thomsen acredita que essa conclusão é prematura. "Acredita-se que Cristina ficará mais fraca e tentará estabelecer uma trégua em pelo menos algumas das frentes de batalha do governo", disse Thomsen. "É cedo demais para dizer como o governo ficará sem Kirchner."

Em setembro, Cristina instruiu o governo a entrar com queixas criminais contra executivos das duas principais empresas jornalísticas do país, La Nación e Clarín, que é parte do Grupo Clarín e tem o jornal em espanhol mais lido do continente. O governo acusava os executivos de violar uma série de leis em 1976, quando as empresas compraram a fábrica de papel para jornal Papel Prensa de membros da família Graiver. Cristina acusou os executivos de violação de direitos humanos, dizendo que fizeram um conluio com a ditadura argentina, que durou de 1976 a 1983, para forçar os Graiver a vender a empresa contra a vontade.

Os executivos das empresas negam as acusações e dizem que o governo está apenas tentando esmagar a imprensa independente.

Membros da família Graiver fizeram relatos conflitantes sobre as circunstâncias que cercaram a venda. Alguns negaram que a empresa tenha sido vendida sob pressão.


Mercado aposta em ajustes na economia

Na morte, como na vida, Néstor Kirchner continua sendo uma figura que divide. Anteontem, a morte do ex-presidente da Argentina foi recebida com lamentações em todo o país. As ações de companhias argentinas, por outro lado, subiram, impulsionadas pela esperança de que a morte de Kirchner possa pressagiar uma mudança na direção de políticas econômicas mais ortodoxas.

Para muitos argentinos, Kirchner será lembrado como o homem que restaurou uma dose de orgulho nacional e de estabilidade após o trauma da moratória em 2001 e a ciranda presidencial. Merecidamente, ele também conquistou aplausos pelos processos na Justiça contra os responsáveis por violações dos direitos humanos sob a ditadura militar no país.

Mas o lado negativo dessa estabilidade foi a crescente concentração de poder e de intolerância em face de discordâncias. Kirchner deixou a Presidência em 2007, mas foi sucedido por sua mulher, Cristina. A eleição dela foi perfeitamente legítima. Mas a perspectiva de Kirchner e sua esposa driblarem o limite constitucional a mandatos presidenciais consecutivos alternando-se no poder não contribuía para a democracia argentina.

E a ofensiva de Cristina contra o Clarín, maior grupo de mídia no país, foi uma preocupante violação à liberdade de imprensa.

A maneira como Kirchner conduziu a economia também deixou muito a desejar. É verdade que o país cresceu fortemente entre 2003 e 2007 - e está crescendo fortemente este ano. Mas isso ocorreu, igualmente, tanto graças à políticas de Kirchner como também apesar delas. Estar rodeado de economias em franca expansão ajudou. Repentinos controles sobre as exportações e a expropriação de recursos de fundos de pensão dos cidadãos e de reservas do Banco Central atestam que a política econômica nos governos do casal Kirchner foi pouco mais de um exercício de improvisação.

Pelo fato de, ao deixar o cargo, o presidente continuar sendo o poder por trás do trono de sua mulher, e em virtude de Cristina raramente ter delegado o poder a outras autoridades, há agora um vácuo no coração da política argenti-na. Isso oferece uma chance para reformas. Mas não está claro se Cristina ou a oposição podem aproveitar isso. Cristina não é uma visionária econômica. E a oposição está terrivelmente desorganizada.

A perene má condução da economia ainda não aniquilou o potencial da Argentina. A economia deverá crescer 7,5% neste ano. Mas, com a inflação anual em cerca de 25%, sua sustentabilidade é duvidosa. Passos relativamente pequenos de política econômica poderiam permitir à Argentina resolver essa precariedade. O país precisa apenas de um líder capaz de dar tais passos.


Jornal “O Estado de S. Paulo”


Notas & Informações


A viuvez da presidente

O fator singular a ter em conta antes de qualquer outro nas especulações sobre os rumos da Argentina depois da morte súbita do ex-presidente Néstor Kirchner, que se fez suceder por sua mulher Cristina e se preparava para reaver o cargo em 2011, é a peculiar cultura política do país. Nela, a veneração pelos líderes falecidos, beirando a necrofilia, confere um sentido literal à clássica expressão de Auguste Comte de que "os mortos governam os vivos".

Ainda assim, depende de quem sejam os mortos e os vivos - e da aptidão destes para encarnar aqueles. Em 1974, quando morreu o presidente Juan Perón, a sua segunda mulher e vice, Maria Estela Martinez, a Isabelita, não conseguiu unir as facções do peronismo e acabou removida da Casa Rosada pelos militares. Duas décadas antes, quando Perón enviuvou de Evita - a santa viva do povo argentino -, o prestígio do caudilho varou o céu. Nem sequer o exílio de 17 anos depois do golpe de 1955 dissipou a sua liderança. E o culto a Evita ajudou a devolvê-lo ao poder.

Há poucas dúvidas de que a peronista Cristina Kirchner estará mais para Perón sem Evita do que para Isabelita sem Perón. Salvo na improvável hipótese de que, desprovida do seu principal interlocutor e articulador político, ela se revele um completo desastre, o retrospecto indica que o desaparecimento prematuro do marido, aos 60 anos, resgatará a sua popularidade. A aprovação ao governo foi atingida pela inflação em alta, os percalços de uma economia que só há pouco começou a se recuperar da crise internacional - e a exacerbação do truculento "estilo K" que ela compartilhava com o falecido e que funciona como uma máquina de fazer desafetos.

Se, como exageravam os críticos, Cristina governava à sombra do marido, talvez seja o caso de dizer que a memória dele, transfigurada - como é da índole argentina - pela morte, tenderá doravante a ser a sua grande aliada. A lembrança de Néstor Kirchner deverá mitigar as consequências dos futuros erros da sucessora, lustrar a sua imagem e conduzi-la como favorita às urnas presidenciais de 2011. Para os mais céticos sobre o discernimento político dos nossos vizinhos, que acreditam que a maioria dos argentinos vota movida pelas emoções e não pelo raciocínio, com a morte inesperada do marido Cristina Kirchner já está praticamente reeleita.

Será um notável feito póstumo do militante da Juventude Peronista e advogado de causas miúdas que, para se distanciar da feroz repressão do regime militar, se mudou de La Plata, onde se formou e conheceu Cristina, para Rio Gallegos, capital da remota Província de Santa Cruz. Na obscuridade, elegeu-se prefeito de Rio Gallegos e em seguida governador de Santa Fé, no centro-leste do país. Subiu na política, impulsionado pela mesma vaga de anomia política que engolfou uma Argentina falida na virada do século. Quando o povo tomou Buenos Aires aos gritos de que se vayan todos, abriu-se espaço para ele ficar.

E mesmo assim não foi fácil. Desajeitado e destituído de carisma, beneficiou-se da desmoralização da classe política. Em 2002, à falta de melhor, o então presidente provisório Eduardo Duhalde o escolheu para disputar a Casa Rosada contra Carlos Menem, desejoso de voltar ao poder. Elegeu-se porque este desistiu de disputar o segundo turno. Assim, com os seus 22% de votos da rodada inicial tornou-se presidente da República - o menos votado da história argentina. Empossado, abriu as asas. Mediante um calote espetacular da dívida, tirou o país da recessão, reduziu o desemprego e a pobreza, e resgatou das profundezas a autoestima nacional.

Outra marca de seu governo foi mandar abrir processos contra os chefes da ditadura militar, que perderam a garantia da impunidade com a derrogação da Lei da Anistia. O aumento de sua popularidade e a hegemonia da facção sob o seu comando no eternamente fraturado Partido Justicialista o animaram a governar com mão pesada - e corrupção desbragada. Em 2007, com o país dividido, teve o estalo de indicar a mulher, senadora, para suceder a ele. A incógnita é o que Cristina fará para se reeleger: mais, ou menos, kirchnerismo?


Caderno: Internacional


Kirchner exercia e mantinha o poder unindo facções
Ricardo Kirschbaum

Político astuto, Néstor Kirchner armou um esquema para retornar ao poder, sucedendo ao atual governo. Já tinha se apresentado como candidato para as eleições de outubro de 2011 e esperava que sua mulher, que o substituiu em 2007, colocasse nele a faixa presidencial para mais um mandato de quatro anos. Seguindo a mesma fórmula, em 2015 os papéis se inverteriam. Ele entregaria a faixa a Cristina. Formalmente, os prazos constitucionais seriam respeitados tranquilamente. O objetivo era conservar o poder nas mesmas mãos.

Kirchner atuava como o que realmente era: o chefe político de um espaço para o qual convergiam tanto setores da esquerda como o aparelho sindical - inimigos mortais na década de 70 - e também os barões peronistas do centro urbano e seus subúrbios, além de alguns caudilhos de províncias. As atitudes progressistas nas quais persistiu tornou menos visível e mais aceitável sua aliança com a ala mais retrógrada do Partido Justicialista. Não era um líder carismático, nem despertava grande simpatia. Mas era um líder que exercia a fundo o poder - o que lhe permitiu manter a coalizão unida, independente dos recursos que precisou usar para tal fim.

Kirchner sempre foi um homem inclinado ao acúmulo - de poder, de aliados, de afetos, de dinheiro - e suspeitava de tudo. Nos últimos meses, com problemas de saúde cada vez mais graves e talvez pressentindo a aproximação ameaçadora da morte, achava que sua presença era fundamental para que o projeto que personificava não se despedaçasse.

O controle rigoroso do poder produziu um governo fechado em si mesmo, com uma lógica política cuja visão norteadora devia ser nítida para que as contradições funcionassem - e estimulassem uma epopeia que pudesse atuar como camuflagem das decisões que contradiziam o que afirmavam combater. A guerra contra os meios de comunicação não leais fazia parte da estratégia.

Seria a História uma rede que aprisiona o homem em determinadas estruturas que se repetem de uma época a outra, como afirmou Alejo Carpentier? Não está provado. Num ato em memória a Kirchner, o político Hugo Moyano exaltou o ex-presidente e o colocou no Olimpo junto de Perón e Evita. As pessoas que assistiam à cerimônia aplaudiram dando vivas à CGT (Confederação-Geral dos Trabalhadores), insistindo na vigência de uma aliança que deve prosseguir, como se a morte de Néstor Kirchner tivesse colocado essa certeza em discussão.

O ex-presidente era um político pragmático que portava o timbre justicialista, apesar das suas ambiguidades. Esse fervor inusitado pela política e pelo poder levou Kirchner a aproveitar ao máximo a oportunidade que lhe foi oferecida por Eduardo Duhalde. Acertou ao renovar a corte, renegociar a dívida externa e devolver o poder para o Estado, embora tenha desperdiçado um momento excepcional para propor e levar adiante questões estruturais que poderiam ter começado a modificar problemas básicos da economia argentina. Ainda há tempo para isso.

Talvez a marca do dia a dia de sua militância política e os riscos ocultos do cotidiano foram, para ele, mais urgentes do que temas intelectuais com os quais nunca se sentiu muito à vontade.

O desaparecimento de um chefe político e, além disso, um candidato, coloca em discussão assuntos que deverão ser considerados por Cristina. Sua candidatura à reeleição foi lançada por Moyano, que se referiu também a uma reestruturação do Partido Justicialista. O sindicalista sabe que, depois da dor e da tristeza, esses espaços políticos têm que ser ocupados rapidamente./TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

É DIRETOR-GERAL DO "CLARÍN"


Relação com o governo Lula foi alternada por amizade e disputas
Durante seu governo, Kirchner adotou série de medidas comerciais unilaterais para só iniciar negociações

O ex-presidente argentino Nestor Kirchner, que morreu na quarta-feira, teve com o Brasil uma forma peculiar de relacionamento. Seu estilo era o de bater primeiro, por meio de decisões comerciais adotadas de forma unilateral, para depois sentar-se à mesa e discutir com o govemo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa estratégia adotada por Kirchner era totalmente diferente da de seus antecessores, que temiam "deixar o gigante sul­americano zangado".

Durante a campanha eleitoral de 2003, Kirchner foi a Brasília reunir-se com Lula, que respaldou sua candidatura contra o rival, o ex-presidente Carlos Menem. Mas o namoro inicial ficou de lado quando, meses depois, Kirchner se irritou com a falta de apoio de Lula nas duras negociações da Argentina com o FMI. O presidente brasileiro tentou colocar panos quentes e se reuniu com o colega novato em El Calafate, no sul da Argentina.

Em 2004, Kirchner decidiu que havia chegado a hora de "endurecer" sua posição na relação com seu principal parceiro comercial e estratégico. Inesperadamente, enquanto estava no avião que o levava para a cúpula do Mercosul na cidade de Puerto Iguazú, disse às agências internacionais que aplicaria medidas de restrição a entrada de eletrodomésticos "made in Brazil". Segundo ele, estava ocorrendo uma invasão de produtos brasileiros, que estavam afetando a indústria nacional. Desta forma, começou a chamada "guerra das geladeiras", que levou a amplas restrições ao comércio de fogões, geladeiras, máquinas de lavar roupa e televisores.

As medidas protecionistas, ao longo da era Kirchner, foram alternadas com declarações de fraternidade e de proximidade com o govemo Lula e o Brasil. Mas isso não impediu que Kirchner demonstrasse ocasionais irritações ausentando-se de cúpulas nas quais o Brasil tinha interesses.

Com inveja da crescente liderança do Brasil na região, Kirchner condenou as aspirações brasileiras a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU e não apoiou a candidatura do brasileiro Luiz Felipe de Seixas Correa à presidência da Organização Mundial do Comércio (OMC). Ele afirmou na época: "Se há um posto vazio na OMC, o Brasil o quer. Se há um lugar na ONU, o Brasil o quer. Se há um lugar na FAO, o Brasil também o quer. Ateé queriam ter um papa brasileiro!"


Jornal ‘O Globo”


Caderno: O Mundo


A viúva da nação
Luto faz políticos darem trégua à presidente e apoio à mulher Cristina
Janaína Figueiredo Correspondente • BUENOS AIRES

Do lado de fora da Casa Rosada, a fila que se formou para prestar a última homenagem ao expresidente Néstor Kirchner chegou a se estender por 15 quarteirões. Dentro do palácio do governo, no Salão dos Patriotas, a figura da mulher enlutada Cristina Kirchner se sobrepôs à imagem altiva da presidente da Argentina.

Depois de 35 anos de história conjunta, Cristina, de 57 anos, foi a protagonista do velório do marido e antecessor. De óculos escuros, a presidente passou o dia inteiro ao lado do caixão, onde recebeu o apoio de gente comum, estrelas como Maradona, e chefes de Estado como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, emocionado, permaneceu por cerca de uma hora ao lado da presidente. Sempre próxima dos filhos, Máximo e Florencia, de sua mãe, Ofélia, e da cunhada, a ministra de Desenvolvimento Social, Alicia Kirchner, entre outros colaboradores do governo que integram o círculo íntimo da família, Cristina tentou se mostrar forte, mas em vários momentos não conseguiu conter a dor e a emoção.

O corpo do ex-presidente será levado hoje de manhã para a cidade de Río Gallegos, no sul do país, onde será sepultado numa cerimônia restrita a familiares. Durante todo o dia, Cristina se esforçou para passar aos argentinos a imagem de uma presidente sob controle. Aos amigos e companheiros políticos, insistia em dizer: “Continuarei lutando e trabalhando, mais do que nunca.” Cada vez que uma pessoa se atrevia a gritar o nome de Kirchner ou a desejar-lhe força, Cristina sorria e agradecia. Em muitos momentos, ela se rendeu ao sofrimento e seus lábios tremiam — deixando de lado o papel de presidente para assumir o da mulher arrasada pela perda do marido.

Para Lula, ideias de Kirchner permanecerão

Em respeito à viúva e não à chefe de Estado, importantes adversários políticos de Kirchner optaram por não comparecer ao velório — entre eles o vice-presidente, Julio Cobos, e o ex-presidente Eduardo Duhalde.

Algumas versões extraoficiais afirmam que a Casa Rosada pediu a ambos que evitassem contato com Cristina. Outros dirigentes, como o deputado do peronismo dissidente Francisco De Narváez, que derrotou Kirchner nas legislativas de 2009 em Buenos Aires, compareceram — mas abandonaram o discurso político de confrontação.

Pouco antes das 21h (horário local), Lula, o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, e o senador Aloizio Mercadante pousaram na base militar do Aeroporto Metropolitano da capital argentina. Muito abalado, o presidente foi aplaudido por simpatizantes de Kirchner ao chegar à Casa Rosada, onde permaneceu ao lado da viúva por cerca de uma hora.

Segurando as lágrimas, Lula deixou Buenos Aires pouco depois, quando se pronunciou sobre a morte do argentino.

— Eu dizia à companheira Cristina agora há pouco que um homem morre, mas as suas ideias permancem.

O legado mais importante de Kirchner foi a recuperação da autoestima, o orgulho e o emprego do povo argentino — disse Lula a jornalistas, antes de retornar ao Brasil. — Não podia deixar de vir, porque Kirchner era mais do que um presidente, era um companheiro que ajudou a construir a América Latina que temos hoje.

Outros líderes, como os presidentes da Bolívia, Evo Morales, da Venezuela, Hugo Chávez, do Uruguai, José “Pepe” Mujica, da Colômbia, Juan Manuel Santos, do Chile, Sebastián Piñera, e do Equador, Rafael Correa, também foram a Buenos Aires apoiar Cristina.

— Estamos todos um pouco órfãos — disse Evo Morales.

Estiveram ao lado da viúva as Mães e Avós da Praça de Maio. Muito emocionadas pela morte do primeiro líder que abriu as portas da Casa Rosada às organizações de defesa dos direitos humanos do país, elas entregaram a Cristina o tradicional lenço branco. Uma das mais abatidas foi Hebe Bonafini, que nas últimas semanas demonstrou total fidelidade ao governo ao promover “a ocupação da Corte Suprema de Justiça”, caso o tribunal não favorecesse o Executivo na disputa com meios de comunicação privados.

Como numa trégua, os protestos contrários foram isolados e sem repercussão.

Houve gritos de alegria e até panelaços em bairros nobres de Buenos Aires. No entanto, o clima em grande parte do país era de respeito ao ex-presidente e, sobretudo, à viúva.


O futuro do peronismo nas mãos de Cristina
De olho na eleição de 2011, aliados aguardam com ansiedade que presidente decida se concorrerá ao 3° mandato K
Janaína Figueiredo Correspondente

BUENOS AIRES. O ex-presidente argentino Néstor Kirchner era um líder cada vez mais questionado por importantes setores do Partido Justicialista (PJ).

Mas, apesar das crescentes críticas por seu estilo autoritário, ainda era considerado ícone do peronismo — movimento que não sabe operar sem o comando de um caudilho forte, com capacidade para disciplinar sua tropa. E, para analistas ouvidos pelo GLOBO, o futuro do peronismo sem Kirchner é uma grande incógnita: dependerá, em grande medida, da reação da presidente Cristina Kirchner.

Ignácio Labaqui, pesquisador da Universidade Católica de Buenos Aires, lembra que a ausência de Kirchner leva ao peronismo o dilema de como construir uma nova liderança.

Apesar de, há dois dias, ter um líder questionado e enfraquecido que havia perdido várias votações no Congresso, o movimento tinha nele, além do presidente do partido, o candidato natural às eleições de 2011.

— Kirchner estava em baixa, mas não estava liquidado politicamente — ponderou Labaqui.

Dilema: entre o velho PJ de Néstor e guinada à esquerda Pesquisas divulgadas recentemente no país mostraram que Kirchner estava em primeiro lugar na lista de potenciais candidatos para as presidenciais do ano que vem, tendo entre 20% e 36% das intenções de voto. O grande problema para a Casa Rosada seria garantir a vitória num eventual segundo turno — já que a sensação predominante entre os analistas argentinos e o próprio governo era de que seria formada uma grande frente anti-K, com muitas chances de derrotar o ex-presidente.

Sem Kirchner, o peronismo é forçado a uma fase de reestruturação. Além de Cristina, os nomes de peso no PJ são os do governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, e o do secretáriogeral da Central de Trabalhadores Argentinos (CGT) e presidente do partido na província de Buenos Aires, Hugo Moyano, o sindicalista mais poderoso do país. Ambos são aliados fundamentais da presidente, mas a relação entre eles é tensa — o que poderia virar uma dor de cabeça para Cristina. Se a presidente decidir concorrer à reeleição, Scioli e Moyano poderiam respaldá-la. Se o candidato for Scioli, a jogada de Moyano, segundo analistas, seria distanciarse do candidato governista.

— O futuro de Scioli ainda é incerto e está condicionado aos movimentos da presidente. O peronismo K perdeu a pessoa que organizava o movimento, disciplinava governadores e prefeitos com um estilo muito questionado, mas que ainda funcionava — opinou Mariano Obarrio, jornalista do “La Nación”. — Até o momento, o que podemos ver é que setores ultrakirchneristas estão tentando fingir que nada aconteceu, que o projeto continua apesar da morte.

Desde a confirmação da morte de Kirchner, os caciques peronistas — aliados e opositores da Casa Rosada — optaram pelo silêncio. Alguns gestos de dirigentes vinculados ao governo, no entanto, sinalizam a continuidade às políticas e ao modelo fundado por Kirchner e, sobretudo, à campanha em busca de um terceiro mandato do peronismo K. Vencer a eleição presidencial de 2011 é o principal objetivo dos peronistas. Futuras alianças ou rupturas dentro do partido dependerão das pesquisas — que começarão a ser divulgadas tão logo se rompa o silêncio pós-luto coletivo.

— A primeira coisa que todos esperamos é a palavra de Cristina.

A presidente tem três opções: continuar refugiada no PJ mais arcaico e aliado do ex-presidente; radicalizar o discurso e buscar um acordo com a esquerda com o apoio de Moyano; ou convocar um grande acordo nacional, que inclua todos os setores políticos do país — disse um importante empresário, pedindo para não ser identificado.

No peronismo dissidente, as figuras que poderiam ganhar peso nos próximos meses são o expresidente Eduardo Duhalde, que já lançou sua pré-candidatura presidencial, o senador e excorredor de Fórmula 1 Carlos Reutemann, e o deputado Francisco De Narváez — que no ano passado derrotou Néstor Kirchner nas eleições legislativas.

— É importante estarmos atentos aos governadores peronistas, porque o apoio deles é crucial para as eleições — lembrou o empresário argentino.

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